A Imperfeição do Presépio - António Manuel Marques
A história do Portugal do século XX, contada através da vida de uma família rural, que se muda para Lisboa, e das dificuldades sentidas nessa época.
Sinopse:
«O casamento. Do meu casamento não tenho grande coisa a dizer. De outra maneira, mas era uma noiva, pois claro. Qual branco? Lá não era assim. Éramos simples, não tínhamos direito a essas coisas que há hoje. Os vestidos a arrojar pelo chão, esse carnaval todo. Nem eu me via metida nessas andanças. Naquele tempo, era tudo simples.»
Assim começa a narrativa de vida de uma mulher vulgar, mas única, guiando-nos pela pequena História portuguesa do século XX, através das memórias coletivas acerca do interior rural e da migração para uma capital que, aos poucos, alargou os seus limites para espaços menos urbanizados, como o bairro de Benfica.
Do discurso intimista e reflexivo da protagonista, constrói-se um olhar feminino sobre os universos conjugal, familiar e do trabalho, recorrendo também a publicações da época e, sobretudo, aos saberes de figuras reais com quem se cruzou.
Sobre o autor:
António Manuel Marques nasceu em Lisboa em 1961.
É docente do ensino superior e tem investigado e publicado nos domínios da sexualidade, saúde e psicologia social do género.
Ao dar início à escrita literária, continua a explorar os temas em que tem investido, fazendo uso da liberdade estilística e narrativa que a ordem académica não aconselha ou não permite.
Género: Ficção Literária
Formato: 15 x 23,5 cm
N.º de páginas: 128
Data de lançamento: 23 de março
PVP: 12,00 €
Sobre este livro há que dizer que o título é excelente – a junção de dois substantivos que se contradizem entre si (como é que um presépio pode ser imperfeito?) para falar de uma(entre muitas) família que, no tempo em que ela existiu, não era “o” padrão;
ResponderEliminarA invocação do presépio (religioso) e a falta dessa esfera, no livro, são soberbas.
Outro aspeto: a frase de Miguel de Unamuno, em epígrafe, tem imensas leituras: só quem viveu, de perto, naquela época, dentro daqueles grupos sociais, teria uma perceção tão fina, nítida, pormenorizada do que escreve; até o uso de certo vocabulário muito específico é sinónimo de quem viveu, já, ali nesses meios: não é só o pormenor do “pitrolino” (referido por Lígia Amâncio, na Bretrand, aquando da apresentação do livro) mas …as referências às Endoenças (p. 68) quando se fala da Verónica, as barracas onde viviam muitas famílias ou pedaços de algumas (p. 34), a gata que é uma “senisga delambida” (p. 54), a viagem na camioneta (para a Brandoa?) com as pessoas a fumarem (p. 60), a relação das pobres mulheres com a morte (p. 61), a referência ao “turismo de habitação” a fundo perdido que deu nova vida aos que, em tempos, também tinham os mesmos privilégios,(p. 72), as mãos a cheirar a lixívia (p. 119) e a bata que "compõe o aspeto"…
- as localizações espaciotemporais são bem interessantes: Benfica, Estrada de Benfica, o bairro das barracas, depois demolidas. A relação entre o ponto de vinda desta migrante e do seu ponto de chegada e a sua (in)capacidade para perceber ambos os locais.
A perspetiva de género adotada é excelente: a história é narrada pelo escritor, através de uma mulher: ele conhece bem este tipo que (re)cria. É impressionante a capacidade que ele tem de as descrever a um nível de pormenor e de conhecimento vivencial das mais pequenas questões do dia-a-dia. Ele traz-me à memória a quantidade de mulheres que eu conheci, neste grupo social no qual vivi (apenas morava nos prédios da Rua Cláudio Nunes, em Benfica).
O autor também conhece a capacidade de mulheres decidirem o que queriam, em termos de educação, para os filhos. Quando ela mente, ao marido, sobre a origem dos fundos para a educação do filho…
Este livro aborda uma perspetiva de género e de classe bem vincadas: a(s) mulher(es) não é/são as senhoras de que muita literatura atual, sobre estes anos aqui analisados, se alimenta. Este revisitar do passado vai buscar o que essas senhoras que hoje escrevem sobre as mulheres daquele tempo não conhecem. Faz-me lembrar a Zita Seabra no livro autobiográfico Foi assim. Ali ela mostra que, ao tornar-se mulher de uma casa clandestina do PCP, nada conhecia do povo que ela queria defender. Ela que nunca lavara roupa vai ter de lavar num tanque, por exemplo. Ora, quem escreve este livro conhece (ou por experiência própria – não pode ser pois é homem - ou por excelente capacidade de observação) o que era ser mulher então. Em muitos e muitos pormenores do texto, embora ficção, vi a minha mãe (que aos 25 anos veio para Lisboa viver com um marido que não a deixou continuar a trabalhar), o meu pai (excelente pai que tinha pedaços de mutismo e que, sem horta, aspirava sempre ao retorno à terra deixada e que lhe fora madrasta, trabalhando sempre na Fábrica), as vizinhas dela ainda hoje ali residentes (vindas de Tomar, Trás-os-Montes, etc.), as barracas que nos circundavam, a energia delas, etc.etc. e até o sítio é o mesmo – Benfica - onde viviam as centenas de migrantes que buscavam melhor vida em Lisboa e que “não queriam emigrar”…
Não posso deixar de recomendar o livro que tanto gostei de ler: partilhar é isso mesmo!
Obrigado pela partilha!
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